Efeitos globais do bife brasileiro

Desmatamento para pastagens na Amazônia é responsável por aproximadamente 50% dos gases de efeito estufa no país

Igor Zolnerkevic

 

O maior rebanho bovino do mundo pertence ao Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) sugerem um número total de 170 a 207 milhões de cabeças de gado – quase ou mais que um boi por habitante. O Brasil é um caso muito importante de impacto ambiental da produção de gado de corte. O relatório de 2006 “A Longa Sombra do Gado de Corte”, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), cita o Brasil muitas vezes e chama a atenção para as peculiaridades do país.

Enquanto em países desenvolvidos a maior parte dos gases de efeito estufa (GEE) vem do setor energético, a mais recente estimativa divulgada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), com base em dados de 1994, revela que 55% a 60% das emissões brasileiras resultam do desflorestamento, geralmente para abertura de novas pastagens.

De fato, não existe um estudo científico preciso do volume dos GEE do desmatamento que se deve à formação de pastagens, justifica Paulo Barreto, pesquisador do Instituto Imazon, em Belém, no Pará. É possível, no entanto, estimar uma ordem de grandeza. Se 75% a 80% do desmatamento na Amazônia são devidos à abertura de pastagens, então, só esse processo, na Amazônia, responde por 41% a 48% das emissões de GEE brasileiras.

Somando a esse número as emissões da atividade do gado de corte em si – segundo estudos recentes, algo como 9% das emissões totais do país – conclui-se que direta ou indiretamente a carne bovina produz em torno de 60% dos GEE do Brasil. Isso é mais que o triplo da média global, que o relatório da FAO estima em 18%.

 

Pressão Externa

Com base no relatório da FAO, apareceram notícias, principalmente na mídia européia, estimando que 1kg de carne bovina brasileira produz 45kg de CO2-equivalente, enquanto a européia registra entre 15 kg e 25 kg de carbono por 1kg de carne, diz Matheus de Almeida, mestrando em economia aplicada na Escola Superior de Agricultura da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Para ele “o setor produtivo nacional teme boicotes e barreiras tarifárias”.

Almeida integrou uma equipe coordenada por Sérgio De Zen, da Esalq, que produziu no ano passado um relatório sobre os impactos ambientais e as emissões de GEE da pecuária de corte brasileira. O relatório foi encomendado pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), que representa pecuaristas de grande porte. O relatório concentrou-se em fontes de GEE como o metano, emitido durante a digestão dos animais.

Os comportamentos estão mudando no meio pecuarista. Magda Lima, pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente, em Jaguariúna, interior de São Paulo, relata: “Antes tínhamos de falar com os produtores com muito cuidado sobre esse assunto”. Segundo ela, soava como insulto dizer que “o gado emite metano”. Magda Lima coordena a redação de outro relatório sobre emissões de GEE da pecuária nacional que será concluído ainda este ano. Essa pesquisa reflete “uma pressão externa para reduzir as emissões, e precisamos ajudar o setor produtivo nessa tarefa,” argumenta ela.

O relatório da Esalq cita um estudo de De Zen, Lima e colaboradores – publicado em 2007– projetando o impacto ambiental do rebanho brasileiro para 2025, com base nas taxas atuais de melhoramento da produção de carne bovina nacional. A conclusão foi que, embora o rebanho futuro deva ser 7% maior que o atual, a produção de carne aumentará em 25%, enquanto as emissões de metano, o principal GEE da pecuária, crescerão apenas 3%.

Almeida justifica essa conclusão pela sofisticação do agronegócio: “A pecuária está deixando o estágio de subsistência e de investimento em longo prazo. Antes não havia a preocupação de ser o mais eficiente possível. Agora existem empresários tomando conta do setor”, justifica. “Se a pecuária continuar a evolução que vem mostrando nos últimos anos, há espaço para ganho de peso, redução da idade de abate, aumento da taxa de prenhez e aproveitamento de carcaças”. E a produção de carne deve crescer mais que o aumento proporcional do rebanho, prevê.

 

Confinamento

Mesmo com a expectativa de que as emissões de GEE se estabilizem, é preciso reconhecer que os índices atuais já são críticos e devem diminuir, consideram pesquisadores que atuam nessa área. Para atingir esse resultado, tanto o relatório da FAO como especialistas nesse segmento recomendam políticas públicas para incentivar a mudança do sistema predominante no Brasil, a criação extensiva, com o gado solto no pasto. A opção é pelo sistema de confinamento.

Pesquisadores brasileiros, no entanto, questionam a base econômica e ambiental dessa alternativa. “No Brasil, grandes grupos fazem confinamento de gado e têm prejuízos”, diz Almeida. Argumenta que “além do custo de implantação – estender cercas, construir cochos para alimentação e tudo o mais – é necessário um capital de giro elevado para manter um grande estoque de ração, em torno de 10 kg/dia por animal”. Economicamente não é possível, na avaliação de Almeida, propor confinamento a pecuaristas com rebanhos inferiores a 50 cabeças.

“Queremos acreditar que o confinamento seja um sistema sustentável, mas é preciso verifi car o balanço dos gases, o quanto entra e sai”, observa Lima. O relatório da Esalq aponta, por exemplo, que a ração à base de grãos de soja para o animal confinado, rica em proteína, aumenta a liberação de óxido nitroso (NO2), gás que contribui 296 vezes mais para o efeito estufa que o dióxido de carbono. “O confinamento pode ser adotado como solução para pequenas regiões produtivas, onde o sistema de produção de gado não tem alternativa viável”, diagnostica o relatório.

 

Alternativas

Aumentar a eficiência da criação extensiva com a melhoria de qualidade das pastagens é a alternativa mais imediata ao confinamento, sugere o relatório da Esalq. Com pastagens de melhor qualidade é possível adensar o número de cabeças por unidade de área, ou seja, criar mais gado em menos espaço e assim reduzir os GEE em 10%. “Algumas regiões de produção têm densidade de 0,5 animal por hectare, quando o ideal deve ser 1,2 animal por hectare”, avalia Almeida. Essa relação, acredita ele, é uma forma de elevar a produtividade, com resultados positivos para produtor e ambiente.

Mas essa relação mais eficiente demanda investimentos para reformulação e manutenção das pastagens, identifica o pesquisador, para quem “a maioria dos produtores não cuida de suas terras por falta de recursos”. Ao menor sinal de aperto financeiro, no diagnóstico do pesquisador, os produtores negligenciam a qualidade das pastagens, “até mesmo com uso do fogo, que não só degrada o solo como deprecia a propriedade”.

Além de melhorar a qualidade das pastagens, pesquisas em diversos países recomendam mudanças na dieta, fisiologia e até na genética dos rebanhos como forma de diminuir as emissões de metano. O gás é produzido quando bactérias e protozoários, no sistema digestivo do animal, decompõem os resíduos da digestão da celulose. Apenas o melhoramento genético poderia reduzir essas emissões em até 30%.

Nesse esforço de mitigação de gases de efeito estufa, outra alternativa é a integração entre pastagens e floresta, identifica Almeida. A proposta desse sistema silvipastoril é criar o gado em pastagens consorciadas, com árvores cultivadas para a produção de madeira, papel, carvão vegetal, ou apenas para serviços ambientais; função que também permite receitas adicionais. Isso já ocorre em países latino-americanos como Colômbia e Costa Rica. Uma vantagem adicional, nesse caso, é que o consórcio pastagens/florestas permite que as emissões liberadas pela pecuária sejam seqüestradas pelo crescimento das florestas cultivadas. Neste caso, uma fazenda pode ser “neutra enquanto emissora de gases de efeito estufa”, analisa o pesquisador.

 

Carbono no Solo

Mesmo a pecuária isolada, devidamente manejada, é capaz de seqüestrar carbono atmosférico. Nesse caso, medidas como manutenção de vegetação adequada, faz com que o carbono se agregue à matéria orgânica do solo. Uma pastagem bem manejada pode absorver até uma tonelada de carbono por hectare, indicam as pesquisas de campo. Alguns estudos da unidade da Embrapa de São Carlos sugerem até 12 toneladas por hectare de estocagem de carbono, segundo Almeida.

Dados produzidos pela equipe internacional de cientistas que integram o programa da ONU sobre mudanças climáticas, no entanto, sugerem que o estoque de carbono no solo ocorre por um período curto, em torno de 25 anos. Isso faz com que essa alternativa seja recusada como um verdadeiro sorvedouro de GEE. Outras pesquisas, no entanto, desenvolvidas no Brasil e no exterior, envolvendo solos tropicais, mostram que a estocagem pode acontecer por períodos muito maiores, de até 100 anos.

Assegurar que o carbono fixado no solo retorne à atmosfera em determinado período de tempo é, na realidade, uma generalização grosseira. “Frações de matéria orgânica são mineralizadas em poucas horas, mas outros volumes permanecem no solo por séculos”, avalia Ítalo Guedes, pesquisador da Embrapa Hortaliças, em Brasília. Ele acredita que uma das principais razões para a convenção do clima da ONU ainda rejeitar a fixação de carbono no solo, está na dificuldade de se medir exatamente o quanto um certo tipo de manejo contribui para o sequestro de carbono.

O que ocorre, neste caso, é a incompatibilidade de utilizar uma mesma metodologia tanto para solos de clima temperados como tropicais. “As regiões tropicais têm solos muito mais profun- dos que os das regiões temperadas, conhecidos como latossolos, com estrutura bem estável”, argumenta Guedes. Os latossolos armazenam grandes quantidades de carbono a profundidades superiores a um metro, ou seja, em níveis distintos aos que os métodos convencionais costumam considerar. Se a estocagem for feita em latossolos – que cobrem a maior parte do território brasileiro – os valores acabarão subestimados, mas o carbono não contabilizado será exatamente o mais protegido e estável, assegura o pesquisador da Embrapa.

 

Novos Dados

Magda Lima, da unidade da Embrapa de Jaguariúna, em complemento às considerações de Guedes, observa que os números sugeridos pelo IPCC e utilizados em projeções de emissões de GEE estão baseados em trabalhos restritos a regiões temperadas. As referências envolvendo a região tropical são escassas. A Embrapa, por exemplo, começou a medir emissões de NO2 e encontrou números diferentes dos sugeridos pelo IPCC, de acordo com a pesquisadora.

Mesmo com o início recente das pesquisas, há 10 anos, o Brasil já é referência em pesquisa de emissões de ruminantes, considera Magda Lima, que também coordena a preparação de relatórios ainda confidenciais sobre as emissões de GEE do rebanho nacional e de seus dejetos. Essas medidas integram um novo levantamento oficial de emissões, que o Brasil entregará ainda este ano à convenção climática da ONU.

O primeiro inventário das emissões brasileiras foi publicado em 2004, com base em dados de 1986 a 1996. O novo contará com dados obtidos com a criação da Rede Agrogases de pesquisa da Embrapa Meio Ambiente, que funcionou de 2003 a 2007. Esse trabalho foi uma espécie de mutirão para medir diretamente as emissões de atividades agropecuárias no Brasil.

Com esse levantamento foi possível obter valores de emissão específicos para o perfil do rebanho nacional, incluindo diferenças entre raças, distinção entre machos e fêmeas e idades, relata a pesquisadora. Ela reconhece, no entanto que ainda há muito trabalho a fazer nessa área. Especialmente porque “a informação varia entre cada um dos estados da federação”. O desafio, acrescenta, “é montar o experimento como ele deve ser”. Apenas medir a emissão de metano não diz nada, adverte. Vários parâmetros devem ser considerados para serem correlacionados. E, às vezes, lamenta a pesquisadora “não há pessoal e equipamento adequados para isso”.

Formação e informação adequadas também são parte dos obstáculos para implementar técnicas como o manejo pastoril e o sistema silvipastoril em escala nacional. Suporte financeiro é importante, mas apenas isso não basta, considera Almeida, da Esalq, para quem a difusão de conhecimento é imprescindível. Para o pesquisador, há muitos trabalhos promissores, mas nem sempre eles estão disponíveis no campo, onde os produtores ainda se valem de recursos arcaicos, entre eles o fogo, na preparação das terras de cultura ou pastagens.

CONCEITOS-CHAVE

– O desmatamento para pastagens na Amazônia é a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa do Brasil. Contribui com aproximadamente 50% do total.

– Desconsiderando o desmatamento, a pecuária bovina brasileira é responsável diretamente por 36% das emissões de gases de efeito estufa restantes do país, ou 9% do total. Emite quase seis vezes mais que o setor de transporte.

– Para reduzir as emissões, pesquisadores recomendam o melhoramento da eficiência do sistema de criação extensivo, principalmente com o manejo adequado de pastagens e a integração da pecuária com a silvicultura.

– O Ministério da Ciência e Tecnologia divulgará este ano um novo inventário oficial das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, com dados inéditos coletados entre 2000 e 2006.
– Os editores

PARA CONHECER MAIS

Primeiro inventário brasileiro de emissões antrópicas de gases de efeito estufa – Relatórios de Referência. Disponível on-line emhttp://www.mct.gov.br/index.php/ content/view/25441.html

Pecuária de corte brasileira: impactos ambientais e emissões de gases efeito estufa. Sérgio De Zen, Luis Gustavo Barioni, Daniela Bacchi Bartholomeu Bonato, Matheus Henrique Scaglia de Almeida e Tatiana Francischinelli Rittl. Sumário disponível on-line em http://www.cepea.esalq. usp.br/pdf/Cepea_Carbono_pecuaria_SumExec.pdf

A pecuária e o desmatamento da amazônia na era das mudanças climáticas. Paulo Barreto, Ritaumaria Pereira e Eugênio Arima. Disponível online emhttp://www.amazonia.org.br/ guia/detalhes.cfm?id=297322&tipo=6&cat_id=46&subcat_id=198

O reino do gado – Uma nova fase na pecuarização da Amazônia Brasileira. Roberto Smeraldi e Peter May. Disponível on-line em http://www. amazonia.org.br/guia/detalhes. cfm?id=259383&tipo=2&cat_id=46&subcat_id=1